Não surpreende muito que um homem, retirado num claustro e separado
das ocasiões de pecado, domine as inclinações desregradas da natureza e
progrida na prática das mais belas virtudes do Cristianismo. Mas que um
príncipe, ao qual não se tem a liberdade de repreender nem contradizer, e que
vivendo em meio às honrarias e às mais perigosas volúpias, domine suas paixões,
conservando a inocência e a pureza de coração, é realmente admirável, podendo
ser chamado um prodígio na ordem da graça.
Entretanto, aquilo que é impossível para as forças do homem, não o é
para Deus. E se a História do Antigo Testamento nos apresenta muitas cabeças
coroadas que souberam aliar a santidade com a autoridade soberana, e a
qualidade de profeta à de chefe, de juiz e de rei, a História do Novo
Testamento nos fornece um número bem maior em quase todos os reinos cristãos.
Nesse mês, dia 25, a Igreja nos propõe um príncipe, que podemos chamar
de pérola dos soberanos, glória da coroa da França, modelo de todos os
príncipes cristãos; e para dizer tudo em duas palavras, um Monarca
verdadeiramente segundo o coração de Deus, da Igreja e do povo.
É o incomparável São Luís, quadragésimo Rei da França desde o início
da monarquia, e o nono da terceira raça, da qual Hugo Capeto foi o tronco.
Seu pai foi Luís VIII, filho de Filipe Augusto, e sua mãe a princesa
Branca, de quem os historiadores atribuem a glória de haver sido filha,
sobrinha, esposa, irmã e tia de reis. Com efeito, seu pai foi Afonso IX, Rei de
Castela, que infligiu aos mouros sério revés na batalha de Navas de Tolosa,
quando mais de duzentos mil infiéis pereceram no campo de batalha; era sobrinha
dos reis Ricardo e João, da Inglaterra; esposa de Luís VIII, Rei da França;
irmã de Henrique, Rei de Castela; mãe de São Luís IX e de Carlos, Rei de
Nápoles e da Sicília; e tia, através de suas irmãs Urraca e Berengüela, de
Sanches, Rei de Portugal, e de São Fernando III, Rei de Leão.
Nasceu São Luís no Castelo de Poissy, a 30 quilômetros de Paris, no
dia 25 de abril de 1215, quando em toda a Cristandade procissões solenes
comemoravam o dia de São Marcos. Vivia ainda seu avô, Filipe Augusto, o qual
acabava de ganhar a célebre batalha de Bouvines, oito anos antes de lhe suceder
seu filho, o futuro Luís VIII.
A infância de São Luís foi um espelho de honestidade e sabedoria. Seu
pai, que unia virtude e zelo pela religião a uma bravura marcial que lhe valeu
o nome de Leão, foi particularmente zeloso na sua educação. Deu-lhe bons
preceptores e um sábio governante: Mateus II de Montmorency, primeiro barão
cristão; Guilherme des Barres, Conde de Rochefort; e Clemente de Metz,
marechal-da-França, que lhe inspiraram os sentimentos que deve ter um rei
cristianíssimo e um filho primogênito da Igreja.
Sua mãe, Branca, não poupou esforços para torná-lo um grande rei e um
grande Santo, sobretudo após a morte de seu filho primogênito, Filipe. Ela lhe
repetia com freqüência estas palavras, dignas de serem imitadas por toda mãe
verdadeiramente católica: "Meu filho, eu gostaria muito mais ver-te na
sepultura, do que maculado por um só pecado mortal".
Com a morte prematura do Rei aos 40 anos, em 1226, na cidade de
Montpellier, quando voltava da guerra contra os hereges albigenses, nosso Santo
subiu ao trono, sob a tutela da mãe, tendo sido sagrado na Catedral de Reims em
30 de novembro daquele mesmo ano.
Sua minoridade foi pródiga em guerras intestinas, causadas pela
ambição e orgulho de senhores feudais do reino, que desejavam valer-se da pouca
idade do soberano para impor as suas pretensões. Mas Deus dissipou todas as
facções por uma proteção visível sobre a pessoa sagrada desse jovem Monarca.
Uma minoridade tão conturbada serviu de ocasião para fazer reluzir a
prudência, o valor e a bondade daquele que se tornaria um protótipo do Rei
Católico.
Matrimônio abençoado por Deus
No dia 27 de maio de 1235, pouco depois de completar 20 anos, casou-se
com Margarida, filha mais velha de Raimundo Béranger, Conde de Provence e de
Forcalquier, e de Beatriz de Sabóia. Era uma princesa que a graça e a natureza
haviam dotado de toda sorte de perfeições, e que lhe daria, ao longo de uma
santa e harmoniosa existência, 10 filhos, cinco homens e cinco mulheres.
Acompanhou ela o jovem esposo na sua primeira expedição além-mar, e após a
morte deste, retirou-se no Mosteiro de Santa Clara, onde terminou seus dias em
20 de dezembro de 1285. Seu corpo, precedido e seguido por pobres, que a
chamavam de mãe, foi enterrado em Saint-Denis.
Luís IX procurava acima de tudo tributar a Deus o serviço e a honra
que Lhe eram devidos. Este lhe retribuía assistindo-o em todas as necessidades,
aconselhando-o nos empreendimentos, protegendo-o dos inimigos e conduzindo a
bom termo todas as suas iniciativas.
O segundo de seus filhos varões foi Filipe III, que lhe sucedeu no
trono, e cujos filhos foram, por sua vez, Reis, até Henrique III. O caçula de
São Luís foi Roberto de Bourbon, cuja descendência subiu ao trono francês
durante nove gerações. Das filhas, com exceção de uma, falecida prematuramente,
todas foram esposas de Reis.
Educação cristã dos filhos: modelo de pai
Ao contrário de outros Monarcas, que negligenciam a educação dos
filhos, ou os deixam, sem maior preocupação, aos cuidados de governantes, São
Luís chamava pessoalmente a si o cuidado de os instruir, imprimindo-lhes na
alma o desprezo pelos prazeres e vaidades do mundo e o amor pelo soberano
Criador. Ele os exercitava normalmente à noite, após as horas Completas, quando
os fazia vir a seu quarto a fim de ouvir as suas piedosas exortações.
Ensinava-lhes, além disso, a rezar diariamente o Pequeno Ofício de Nossa
Senhora, obrigava-os a assistir às Missas de preceito, e incutia-lhes a
necessidade da mortificação e da penitência. ±s sextas-feiras, por exemplo, não
permitia que portassem qualquer ornamento na cabeça, porque foi o dia da
coroação de espinhos de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ainda hoje existem os manuscritos das instruções por ele deixadas à
sua filha Isabel, Rainha da Navarra: são tão santas e cheias do espírito de
Nosso Senhor, que nenhum diretor espiritual, por mais esclarecido que seja,
seria capaz de apresentar outras mais excelentes.
O governante: justiceiro e moralizador dos costumes
Se São Luís soube educar tão bem os filhos, foi entretanto ainda mais
admirável em governar os negócios públicos. Nunca a França experimentou tanta
paz e prosperidade como em sua época. Enquanto as outras nações, em todas as
latitudes, estavam em convulsão, os franceses por ele governados gozavam de uma
feliz tranqüilidade, assegurada pela sabedoria do Monarca. Ele soube banir do
Estado, através de sábias leis, todos os desregramentos então existentes. O
primeiro deles foi a blasfêmia e os juramentos ímpios e execráveis. Foram tão
rigorosas as punições contra eles estipulados, que o Papa Clemente IV julgou
dever atenuá-las.
Outros desregramentos que se esforçou em exterminar foram os duelos,
os jogos de azar e a freqüentação a lugares de tolerância. Antes de São Luís,
nenhum Rei havia proibido os duelos: toleravam-no, e às vezes o ordenavam, a
fim de se conhecer o direito das partes; o que importava meio enganoso e contrário
aos preceitos da justiça.
Modelo em tudo para os homens públicos de todos os tempos e sobretudo
de nossos dias, Luís IX o era de modo especial no tocante à boa administração
dos bens do Estado e ao exímio cumprimento da lei. Assim, por exemplo, quando
enviava juízes, oficiais e outros emissários às províncias para ali exercerem
durante algum tempo Justiça, proibia-lhes de adquirir bens e empregar seus
filhos, com receio de que isso pudesse ensejar a que viessem cometer
injustiças.
Nomeava, acima deles, juízes extraordinários para examinar sua conduta
e rever seus julgamentos, a exemplo de Deus, que assegura que julgará a
Justiça. E se por acaso encontrava que em algo haviam agido mal, impunha-se
primeiramente a si mesmo uma severa penitência, como se tivesse sido o culpado
pelo excesso praticado por eles, e em seguida ministrava-lhes severa punição,
obrigando-os a restituir o que haviam tomado do povo, se fosse esse o caso, ou
a reparar aqueles que haviam sido condenados injustamente. Pelo contrário, quando
tomava conhecimento de que haviam cumprido dignamente os seus deveres,
recompensava-os regiamente e os fazia ascender a funções mais honrosas.
Além de administrar Justiça, não negligenciava o Santo Monarca o
cuidado dos pobres.
Zelo pela ortodoxia e piedade
Se foi notório seu zelo em extirpar a libertinagem no reino de França,
o que dizer de seu empenho em relação ao extermínio da heresia e ao
estabelecimento da Fé e da disciplina cristã? Para isso tomou-se de grande
afeição pelos religiosos de São Domingos e de São Francisco, a quem ele via
como instrumentos sagrados dos quais a Providência queria se servir para a
salvação de uma infinidade de almas resgatadas pelo precioso Sangue de Nosso
Senhor Jesus Cristo. Ele os convidava com certa freqüência para jantar,
sobretudo São Tomás de Aquino e São Boaventura, dois luzeiros a iluminar o
firmamento da Santa Igreja a partir da Idade Média.
Um dos traços em que a religiosidade desse grande Monarca mais se
manifestou foi a aquisição, junto a Balduíno II, Imperador de Constantinopla,
da Coroa de Espinhos de Nosso Senhor Jesus Cristo, para a qual mandou edificar
essa verdadeira maravilha da arquitetura gótica que é a Sainte-Chapelle, na Île
de la Cité, no coração de Paris.
Voto de cruzar-se: realiza-se a VI Cruzada
Deus, quando suscita numa alma um grande desejo, fá-la não raro passar
por uma grande provação antes de atendê-la. Foi o que sucedeu com São Luís, que
em 1245 caiu gravemente enfermo, a ponto de alguns terem como certa sua morte.
Nessa contingência os franceses, que o amavam como a um pai, fizeram violência
ao Céu, organizando vigílias, procissões e outros atos de piedade pela sua
convalescença. O Monarca fez então um voto: caso sobrevivesse, partiria para
libertar o Santo Sepulcro.
Cumpriu-o três anos depois, ao partir para Lyon, onde se encontrou com
o Papa Inocente IV, de quem recebeu a bênção apostólica. Dirigiu-se em seguida
para Aigues-Mortes, onde o aguardavam as embarcações que deveriam conduzi-lo
com os cruzados ao Oriente. Era o dia 25 de agosto de 1248, data em que se
iniciava a VI Cruzada da História.
As naus tocaram inicialmente a Ilha de Chipre, onde o Monarca se viu
obrigado a permanecer durante o inverno, devido a uma peste que arrebatou a
sexta parte de seu exército. Sua demora e essas perdas foram contudo de algum
modo recompensadas pela conquista do Rei de Chipre, a quem São Luís conseguiu
convencer de juntar-se à expedição.
Reencetou o Santo Cruzado a sua expedição no dia 13 de maio de 1249, à
frente de uma formidável armada de 1800 embarcações, grandes e pequenas.
Entretanto, devido às tempestades, mais da metade delas desviou-se da rota. De
sorte que, ao passar em revista suas tropas, encontrou apenas 700 cavaleiros,
dos 2800 de que se compunha seu exército.
De batalha em batalha; vitorioso numas e com reveses em outras;
passando por humilhações pelos pecados de seus soldados ou por honrarias em
pleno cativeiro (os emires do Egito quiseram elegê-lo Sultão!); sendo informado
do nascimento de um dos filhos em Damiette, em plena época de negociação com os
algozes, e do falecimento de sua bondosa mãe, a Rainha Branca, na França;
enfrentando pestes e naufrágios, retomou o Rei-Cruzado, em 25 de abril de 1254,
festa de São Marcos, o caminho da doce França, onde aportou no dia 19 de julho
do mesmo ano. Em 5 de setembro encontrava-se no Castelo de Vincennes, e no dia
seguinte entrava solenemente em Paris.
Seu regresso foi acolhido com eloqüentes manifestações de dileção do
Papa Clemente IV e de Henrique III, Rei da Inglaterra.
Provações e santa morte do Rei Cruzado
Decidiu então o Santo lançar uma VII Cruzada, a última da História,
para a qual se apresentaram seus filhos e Ricardo, Rei da Inglaterra, além de
numerosos príncipes e senhores. Após terem sido tomadas todas as providências,
partiram em direção a Túnis, no dia 4 de julho de 1270.
Mais uma vez no mar, e eis que outra grande tempestade dispersa as
embarcações, fazendo com que muitas sejam impedidas de partir. São entretanto
reparadas e chegam todas a Túnis. Mas o rei daquelas terras, bárbaro, traidor e
infiel, que havia chamado São Luís à ≡frica dizendo que queria tornar-se
cristão, sequer permitiu que sua armada descesse. O embate começou então ali
mesmo, com os franceses assediando vários pontos nevrálgicos dos infiéis e a
própria capital. Como esta resistisse, decidiram dominá-la cortando os víveres.
Mas a decomposição da cidade atingiu o exército francês, que foi logo
empestado por todos os lados, ceifando inúmeras vidas. São Luís viu morrer seu
filho Jean Tristan, nascido por ocasião do seu cativeiro no Egito, e pouco
depois ele mesmo entregaria serena e santamente sua bela alma a Deus, o que se
deu no dia 25 de agosto de 1270, precisamente 22 anos após sua partida para a
VI Cruzada.
As relíquias de São Luís foram levadas para a França por seu filho
Filipe, com exceção das entranhas, destinadas à Abadia de Montréal, na Sicília,
a pedido do Rei Carlos, irmão do Santo Monarca. O resto de seu corpo repousa na
Abadia de Saint-Denis. Seu culto foi juridicamente examinado e aprovado pelo
Papa Bonifácio VIII, que o canonizou em 1297.
Créditos à Hélio Viana
Referência: Les Petits Bollandistes, Vie des Saints, Typographie des
Célestins, ancienne Maison L. Guérin, 1874, t. V, p. 192 a 217, Bar-le-Duc.
Fonte: Revista Catolicismo | Agosto de 1998
Ilustração: Essa pintura que retrata o Rei Luís de França está na
Catedral de Monreale (Duomo di Monreale, em italiano). Está em uma capela que
foi criada em 1270 para guardar os restos mortais de São Luís de França e do
cardeal Raoul Grosparmi, bispo de Albano. Filipe III da França ordenou a
transferência dos restos mortais de seu pai para a catedral da basílica de
Saint Denis. Na capela do altar que abrigava o enterro permanece uma urna
contendo o coração e as entranhas de São Luís de França. Para pagar o favor
recebido, o rei doou à catedral um relicário contendo um "Espinho
Sagrado" pertencente à Coroa de Espinhos de Nosso Senhor Jesus Cristo.
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