Retábulo da capela consagrada a São Pelayo Catedral de Córdoba |
Pelayo, nascido em 911 em Albeos, Crecente (Galiza)
vivendo, na primeira flor dos seus anos, como outro Tobias, temente a Deus,
mereceu ser feito vítima de Cristo. Teve ele excelente criação, em casa do
bispo de Tuy, Hermógio, seu tio. Entrou naquele tempo Abderramen, rei de
Córdova, III do nome, com um poderoso exército pelas terras dos cristãos,
abrasando-as como se fosse um raio. E, não podendo D. Sancho Abarca
resistir-lhe, pela desigualdade de forças, chamou em seu socorro a el-rei de
Leão D. Ordonho II, contra este comum inimigo. Veio logo em pessoa com grande
cópia de soldados, e entre eles dois zelosos bispos para animar os cristãos,
Dulcídio, de Salamanca, e Hermógio, de Tuy. Porém, como os sucessos da guerra
são vários e dependem do Senhor dos exércitos, declarou-se a vitória por
Abderramen, que, usando de todo o gênero de hostilidade com os vencidos, voltou
para Córdova rico de despojos e cativos. Um destes foi o bispo Hermógio, que,
fechado e maltratado em duríssima masmorra, ofereceu por resgate alguns mouros
de seu serviço, que escusava. Aceitou el-rei o partido, e o deu por livre,
contanto que deixasse reféns para segurança da dívida. E assim lhe deu a
Pelayo, seu sobrinho, que era a melhor jóia que tinha, menino com quase dez
anos. O qual se foi logo para o cárcere, não para viver como preso, mas para o
santificar, como José em tempo de Faraó, com sua angélica presença. Ali
guardava pureza na alma e no corpo, grande honestidade e modéstia, vivendo
sempre mui ajustado com a Lei Divina. Fazia calar aos infiéis, se tocavam
matérias de religião, e envergonhando-os e confundindo-os com a verdade da
católica doutrina. Mas estes, admirados da sua gentileza, julgaram que era
alvitre para o seu rei (escravo dos infames vícios da carne) a oferta daquele
inocentezinho. Mandou logo levá-lo à sua presença. Para este intento, o
vestiram ricamente, ajudando a formosura natural com a artificial, para que
deste modo fizesse mais cobiça ao torpe Abderramen. Por estes passos chegou
Pelayo aos da morte, que pudera acreditar mil vidas, quando fossem mais largas
e menos ilustre que a sua. Entrou o exemplar da castidade na câmara real; e
logo, pelas carícias e promessas do bárbaro, conheceu o depravado de seus intentos,
e firmou seu coração com uma determinação imortal de envidar todo o resto da
sua vida, a troco de não perder a graça de Deus. Começou o rei com razões a
querer persuadir-lhe que deixasse a Lei de Cristo pela sua; mas respondeu a
todas mais do que prometia a sua idade, porque nas virtudes, que são a da alma,
era já provecto. Chegou-se a ele o bárbaro, e começou a pôr-lhe as mãos pelo
rosto, e o quis abraçar e dar-lhe ósculos. Levantou o menino a mão, e deu-lhe
uma grande punhada na boca, dizendo: Aparta, perro (cão); aparta teu rosto do
meu; cuidas que sou algum dos teus afeminados rapazes, com que te desenfadas? E
logo rasgou as vestiduras preciosas, ficando mais desembaraçado para a luta que
esperava. Neste tempo estava Abderramen já tão cego e empenhado na afeição
lasciva que as afrontas e desprezos de Pelayo não foram bastantes para mudar de
intento. Pelo que mandou a seus criados que com afagos, branduras e promessas
procurassem atraí-lo à seita de Mafoma e rendê-lo à sua vontade lasciva. Durou
a porfia muito tempo, porém não serviu senão de fortalecer o ânimo do menino,
com grande indignação e pena do rei, quando soube da sua constância. Pelo que,
trocado o amor falso em ódio verdadeiro, o mandou atenazar vivo,confiado que
tão frágil corpozinho não poderia sustentar tão cruéis tormentos, e que, uma
vez deixada a Lei de Cristo, logo não faria melindre de conservar a castidade.
Executou-se o ímpio mandato, com tanta crueldade que em breve aquela cândida
açucena com o nácar de seu sangue ficou encarnada rosa. E, porque o martírio
não o faz a pena senão a causa, publicou este em altas vozes: Cristão sou, e
servo indigno de Jesus Cristo, cuja Lei confessarei eternamente, sem haver
coisa na vida que dela me aparte um instante. Dada conta a el-rei do que passava,
mandou-lhe cortar os membros, um por um, para que o tormento fosse mais
prolongado.
Os
algozes arremeteram então àquele cordeirinho como lobos famintos, fazendo nele
tal carniçaria que mais pareciam feras do que homens, ou mais demônios que
feras. Levantando o menino as mãos para o céu, onde tinha o coração, para
oferecer a Deus sacrifício de si mesmo, e impetrar fortaleza para o consumar,
lhas derrubaram logo a golpe de alfange.
E após isto lhe deceparam os braços e
pernas, e ultimamente a cabeça, durando a batalha mais de seis horas, em que
sempre invocava a Jesus Cristo, de cujo braço omnipotente lhe veio a invencível
fortaleza contra tão atrozes tormentos. Suas preciosas relíquias, lançadas
pelos tiranos nas correntes do Guadalquibir, as santificaram, até que a piedade
e industria dos fiéis as tirou do profundo, e lhes deu honroso depósito na
igreja de S. Ginês; e a cabeça se colocou na cabeça de S. Cipriano, com a
solenidade possível. E foi tão célebre o triunfo deste santo menino português
que logo a fama estendeu pelo mundo as suas asas, de sorte que o celebrou no
coração da Alemanha a laureada poetisa Roswita, freira beneditina de ilustre
sangue e engenho; e festejam o dia desta vitória (que foi a 26 de junho) muitas
igrejas em Espanha, especialmente as que são consagradas a seu nome em Castela,
Galiza e Portugal, onde os naturais tomam o seu nome.
Urna que contém os restos mortais de São Pelayo Monasterio de San Pelayo (Oviedo - Espanha) |
Fonte: Capela Santa Maria das Vitórias
Obs: Fiz algumas alterações no texto, como por exemplo o nome do santo. O autor menciona Paio, porém preferi manter o nome em espanhol: Pelayo.
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