LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão de Santa Catarina (1663),
de Padre António Vieira.
Textos literários em meio eletrônico
Sermão de Santa Catarina (1663),
de Padre António Vieira.
Quinque autem ex eis erant fatuae, et quinque prudentes (1).
I
A casa que edificou para si a Sabedoria: Sapientia aedificavit sibi domum (2), era aquela parte mais interior e mais sagrada do Templo de Salomão, chamada por outro nome Sancta Sanctorum. Levantavam-se no meio dela dois grandes querubins, cujo nome quer dizer sábios, e são entre todos os coros dos anjos os mais eminentes na sabedoria. Com as asas cobriam estes querubins a Arca do Testamento, e com as mãos sustentavam o propiciatório, que eram os tesouros e o assento da Sabedoria divina. A Arca era o tesouro da Sabedoria divina em letras, porque nela estavam encerradas as tábuas da lei, primeiro escritas, e depois ditadas por Deus; o propiciatório era o assento da mesma Sabedoria em voz, porque nele era consultado Deus, e respondia vocalmente, que por isso se chamava oráculo. As paredes de toda a casa em roda estavam ornadas com sete palmas, cujos troncos formavam outras tantas colunas, e os ramos de umas para as outras faziam naturalmente seis arcos, debaixo dos quais se viam em pé seis estátuas, também de querubins. Esta era a forma e o ornato da casa da Sabedoria, edificada por Salomão, porém traçada por Deus, e não se viam em toda ela mais que querubins e palmas, em que a mesma Sabedoria, como vencedora de tudo, ostentava seus troféus e triunfos.
Mas se Deus naquele tempo se chamava Dominus exercituum, e se prezava de mandar sobre os exércitos e batalhas, e dar ou tirar as vitórias, parece que as estátuas colocadas debaixo de arcos triunfais de palmas não haviam de ser de querubins sábios, senão de capitães famosos. Não pareceria bem, debaixo do primeiro arco, a estátua de Abraão com a espada sacrificadora de seu próprio filho, vencendo a quatro reis só com os guardas das suas ovelhas? Não diria bem, debaixo do segundo arco, a estátua de Moisés com o bastão da vara prodigiosa, afogando no Mar Vermelho a Faraó, e triunfando de todo Egito? Não sairia bem, debaixo do terceiro arco, a estátua de Josué com o sol parado desfazendo o poder e geração dos gabaonitas, sem deixar homem à vida? Não avultaria bem, debaixo do quarto arco, a estátua de Gedeão com a tocha na mão esquerda e a trombeta na direita, metendo em confusão e ruína os exércitos inumeráveis de Madiã e Amalec? Não campearia bem, debaixo do quinto arco, a estátua de Sansão com o leão aos pés e a queixada do jumento na mão, matando a milhares dos filisteus? Finalmente, não fecharia esta famosa fileira a estátua de Davi com a funda e a pedra, derrubando o gigante e cortando-lhe a cabeça com a sua própria espada? Pois se estas seis estátuas famosas ornariam pomposamente a sala do Senhor dos exércitos, por que razão os arcos triunfais das palmas cobrem antes estátuas de querubins sábios, que de capitães valorosos? Porque é certo na estimação de Deus, ainda que alguns homens cuidem o contrário, que as vitórias da Sabedoria são muito mais gloriosas que as das armas, quanto vai das mãos à cabeça. Por isso quis o mesmo Deus que lhe edificasse a casa, não o pai, senão o filho, não Davi, o valente, senão Salomão, o sábio.
Suposta esta verdade, que em toda a parte, e muito mais neste empório das letras, se deve supor sem controvérsia, acomodando-me à profissão do auditório e à celebridade do dia, só falarei de Santa Catarina hoje enquanto doutora e sábia. Lá diz Ezequiel que viu uma roda junto a um querubim: Rota una juxta cherub unum (Ez. 10,9). E que querubim é aquele, que tem a roda ao lado, senão Santa Catarina? Na casa da Sabedoria, a cada palma respondia um querubim; nesta, que também é da sabedoria, veremos um querubim com muitas palmas. O assunto pois do sermão serão as vitórias de Catarina, e o título: A sábia vencedora. Ave Maria.
II
O mais formoso teatro que nunca viu o mundo, a mais grave e ostentosa disputa que nunca ouviram as Academias, a mais rara e portentosa vitória que nunca alcançou da ignorância douta e presumida a verdadeira sabedoria, é a que hoje teve por defendente um querubim em hábito de mulher, ou um rosto de mulher com entendimento e asas de querubim, Santa Catarina. A aula, ou teatro desta famosa representação, foi o palácio imperial; os ouvintes e assistentes, o Imperador Maximino, o senado de Alexandria, e toda a corte e nobreza do Oriente; a questão, a da verdadeira divindade de um ou de muitos deuses, e a fé ou religião que deviam seguir os homens; os defendentes, de uma parte uma mulher de poucos anos, e da outra cinqüenta filósofos, escolhidos de todas as seitas e universidades; e a expectação da disputa e sucesso da controvérsia, igual nos ânimos de todos à grandeza de tão inaudito certame. Em primeiro lugar propuseram os filósofos inchados seus argumentos, aplaudidos e vitoriados de todo o teatro, e só da intrépida defendente recebidos com modesto riso. E depois que todos disseram quanto sabiam em defensa e autoridade dos deuses mortos e mudos, que eles chamavam imortais, então falou Catarina, por parte da divindade eterna e sem princípio, do Criador do céu e da terra e da humanidade do Verbo, tomada em tempo, para remédio do mundo.
Falou Catarina, e foi tal o peso das suas razões, a sutileza do seu engenho e a eloqüência mais que humana com que orou e perorou, que não só desfez facilmente os fundamentos ou erros dos enganados filósofos, mas, redarguindo e convertendo contra eles seus próprios argumentos, os confundiu e convenceu com tal evidência, que sem haver entre eles quem se atrevesse a responder ou instar, todos confessaram a uma voz a verdade infalível da fé e religião cristã. E que faria com este sucesso Maximino, imperador empenhado e cruel? Afrontado de se ver vencido nos mesmos mestres da sua crença, de quem tinha fiado a honra e defensa dela, e enfurecido e fora de si, por ver publicamente demonstrada e conhecida a falsidade dos vãos e infames deuses, a quem atribuia o seu império, em lugar de seguir a luz e docilidade racional dos mesmos filósofos, com sentença bárbara e ímpia, mandou que ou sacrificassem logo aos ídolos, ou morressem todos a fogo. Todos, sem duvidar nem vacilar algum, aceitaram a morte por Cristo, não só constantemente, mas com grande alegria e júbilo, e na mesma hora, e do mesmo teatro onde tinham entrado filósofos, saíram teólogos, onde tinham entrado gentios, saíram cristãos, e onde tinham entrado idólatras, saíram mártires. Oh! vitória da fé a mais ilustre e ostentosa, que antes nem depois celebraram os séculos da Cristandade! Oh! triunfo de Catarina, não com duas palmas nas mãos, de virgem e mártir, mas com cinqüenta palmas aos pés de sutil, de angélica e de invencível doutora! Digna por esta inaudita façanha de que no mais alto do Monte Sinai, depois de ser trono do supremo legislador, as mesmas mãos, que escreveram as primeiras letras divinas, levantassem eterno troféu à memória das suas.