sábado, 11 de julho de 2020

O canto gregoriano

Esplendores da Cristandade

O canto gregoriano

Expressão musical da autêntica espiritualidade católica, nos dias atuais parece ressurgir das cinzas e encanta os católicos no mundo inteiro.

por Marcos Luiz Garcia

Eles estão sorrindo! Como é possível?! — exclamou Nero, imperador romano do primeiro século da era cristã, ao entrar na arena para se deleitar com a visão dos restos esparsos pelo chão, ainda quentes e sangrentos, das vítimas de mais um espetáculo que acabara de promover.

O mesmo estupor invadia as centenas ou milhares de espectadores que afluíam frenéticos ao Coliseu (algo à maneira de certas torcidas futebolísticas de hoje). Iam assistir ao dantesco espetáculo das feras devorando cristãos, mas acabavam presenciando os mais admiráveis atos de coragem e fidelidade à fé de Jesus Cristo.

Aos poucos a noite caía, o silêncio dominava a cidade, o monumental centro de espetáculos ficava entregue às sombras, isolado e frio, sem viva alma. Era o momento em que, correndo sérios riscos, pequenos grupos de cristãos, prevalecendo-se das penumbras e da escuridão, se esgueiravam céleres a recolher os restos dos mártires, para levá-los às profundidades das catacumbas.

Num misto de veneração e tristeza, com lágrimas brotadas de uma dor profunda e ao mesmo tempo de uma resolução inabalável de fazer triunfar a santa Religião de Jesus Cristo, eles depositavam aqueles restos sagrados sobre mesas de pedra.

Tinha início comovente cerimônia. O bispo, sagrado por um dos Apóstolos, celebrava a Santa Missa, enquanto eram entoados cânticos próprios para aquela circunstância.

Gregoriano: o canto sacro católico que nasce

O que cantavam esses primeiros cristãos? Com certeza entoavam algum hino característico da tradição judaica, mas que aos poucos foi sendo aprimorado pela influência que o Espírito Santo exercia nos corações daqueles heróicos cristãos.

O cântico foi ganhando expressão nova, viva e impregnada de sobrenatural. Um timbre nunca observado antes, uma densidade desconhecida na sinagoga decadente daquela época, uma luz que abria sendas rumo ao futuro. Assim, o cântico sacro católico começou a desabrochar, como que regado pelo sangue dos mártires e pelo ardor invencível dos primeiros católicos. Era uma expressão, em última análise, do amor de Deus que dominava aqueles corações e almas fiéis.

Ao lado do crescimento do espírito religioso, um novo estilo de vida, uma nova maneira cristã de conduzir a existência temporal começou a nascer e a se expandir, primeiro dentro das catacumbas, depois para fora daquelas grutas insalubres. Todo um conjunto de valores, à maneira de uma árvore cheia de flores, começou a abrir suas pétalas e a perfumar o ambiente pagão da época.

O fogo de Pentecostes transformara-se num incêndio de grandes proporções. Contrapondo-se ao mundo pagão, às perseguições, às feras, aos constantes martírios, ia se consolidando cada vez mais a Igreja, que Nosso Senhor Jesus Cristo fundara com sua Paixão e morte redentora. Dos subterrâneos corredores catacumbais a Igreja chegou à superfície. Conquistou a mãe do imperador e fez dela uma santa; converteu o próprio imperador Constantino, que deu liberdade ao cristianismo. Depois ele mudou seu governo para Constantinopla, permanecendo em Roma a sede da Igreja Católica.

Como veremos, essa mudança contribuiu para que o canto sacro católico pudesse desabrochar com características próprias.

Aos poucos, o canto gregoriano torna-se a “voz” da Igreja

Em cumprimento à ordem “Ide e pregai o Evangelho a todos os povos”, expressa por Nosso Senhor, os cristãos expandiram-se para outras áreas de civilização. E o canto sacro foi recebendo organicamente as mais diversas influências dos gregos, egípcios e outros povos, dando origem a um conjunto variado, mas sem ainda uma expressão de unidade.

No final do século VI, a Providência Divina suscitou o Papa Gregório I que, pelo imenso contributo prestado ao bem da Santa Igreja, mereceu o título de Magno, e depois a glória dos altares. De nobre família romana, admirável cultor da música, conseguiu, a partir do estudo e ordenação das peças litúrgicas praticadas nos vários quadrantes onde se expandira a Igreja, disciplinar tanto a liturgia quanto a música sacra. Graças a seu êxito em manter o autêntico espírito sobrenatural do canto, a liturgia preservou a graça que estava conquistando o mundo e santificando cada vez mais as almas.

É oportuno lembrar aqui a definição de liturgia que Ismael Fernández apresenta em seu Curso Elementar de Canto Gregoriano: “Liturgia é a ação sacerdotal de Jesus Cristo, continuada na Igreja e pela Igreja sob a ação do Espírito Santo, por meio da qual ‘atualiza’ a sua obra salvadora através de sinais eficazes, dando assim um culto perfeito a Deus e comunicando aos homens a salvação”.1

São Gregório Magno conseguiu não só aprimorar como também dar unidade e definição ao canto sacro, fato que acabou ligando até hoje seu nome a esse estilo de canto: gregoriano.

A partir de São Gregório Magno, a mais autêntica expressão sonora do espírito da Igreja definiu-se, ganhando novo impulso de expansão e elevação. O canto gregoriano tornou-se, por assim dizer, “a voz da Igreja”.