quarta-feira, 13 de junho de 2018

A Dupla Concepção de Vida



CAPÍTULO II
A DUPLA CONCEPÇÃO DE VIDA

A civilização cristã procede de uma concepção de vida diversa daquela que dera origem à civilização pagã.

O paganismo, empurrando o gênero humano pelo declive em que o pecado original o colocara, dizia ao homem que ele estava sobre a terra para fruir a vida e os bens que este mundo lhe oferece. O pagão não ambicionava, não buscava nada além disso; e a sociedade pagã estava constituída para oferecer esses bens tão abundantes e esses prazeres tão refinados, ou também tão grosseiros quanto possam ser, para os que estavam em situação de pretendê-los. A civilização antiga nasceu desse princípio, todas as suas instituições dele decorriam, sobretudo as duas principais, a escravidão e a guerra. Pois a natureza não é suficientemente generosa, e sobretudo então não tinha sido cultivada pelo tempo necessário e bastante bem para oferecer a todos os prazeres cobiçados. Os povos fortes subjugavam os povos fracos, e os cidadãos escravizavam os estrangeiros e mesmo seus irmãos, para obter produtores de riquezas e instrumentos de prazer.

O cristianismo chegou e fez o homem compreender que devia procurar numa outra direção a felicidade cuja necessidade não cessa de atormentá-lo. Ele destruiu a noção que o pagão criara da vida presente. O divino Salvador ensinou-nos por Sua palavra, persuadiu-nos por Sua morte e ressurreição, que se a vida presente é uma vida, ela não é A VIDA que Seu Pai nos destinou.

A vida presente não é senão a preparação para a vida eterna. Aquela é o caminho que conduz a esta. Nós estamos in via, diziam os escolásticos, caminhando ad terminum, na estrada para o céu. Os sábios de hoje exprimiriam a mesma idéia, dizendo que a terra é o laboratório no qual se formam as almas, no qual se recebem ese desenvolvem as faculdades sobrenaturais que o cristão, após a morte, gozará na morada celeste. Como a vida embrionária no seio materno. É também uma vida, mas uma vida em formação, na qual se elaboram os sentidos que deverão funcionar na estada terrestre: os olhos que contemplarão a natureza, o ouvido que recolherá suas harmonias, a voz que a isso misturará seus cantos etc.

No céu nós veremos a Deus face a face,1 é a grande promessa que nos foi feita.
Toda a religião está baseada nela. E no entanto nenhuma natureza criada é capaz
dessa visão.

Todos os seres vivos têm sua maneira de conhecer, limitada por sua própria natureza. A planta tem um certo conhecimento das substâncias que devem servir à sua manutenção, posto que suas raízes se estendem em direção a elas, procurandoas para ingeri-las. Esse conhecimento não é uma visão. O animal vê, mas ele não tem a inteligência das coisas que seus olhos abarcam. O homem compreende essas coisas, sua razão as penetra, abstrai as idéias que elas contêm e através delas se eleva à ciência. Mas as substâncias das coisas permanecem escondidas, porque o homem é apenas um animal racional e não uma pura inteligência. Os anjos, inteligências puras, vêem a si mesmos na sua substância, podem contemplar diretamente as substâncias da mesma natureza da deles, e com mais razão as substâncias inferiores. Mas eles não podem ver a Deus. Deus é uma substância à parte, de uma ordem infinitamente superior. O maior esforço do espírito humano conseguiu qualificá-Lo de “ato puro”, e a Revelação nos diz que Ele é uma trindade de pessoas na unidade da substância, a segunda engendrada pela primeira, a terceira que procede das outras duas, e isso numa vida de inteligência e de amor que não tem começo nem fim. Ver a Deus como Ele é, amá-Lo como Ele Se ama -- e nisto consiste a beatitude prometida -- está acima das forças de toda natureza criada e mesmo possível. Para compreendê-Lo, essa natureza não deveria ser nada menos que igual a Deus.

Mas aquilo que não tem cabimento pela natureza pode sobrevir pelo dom gratuito de Deus. E isto é: nós o sabemos porque Deus no-lo disse ter feito. Isto serve para os anjos e isto serve para nós. Os anjos bons vêem a Deus face a face, e nós somos chamados a gozar da mesma felicidade.

Nós não podemos chegar a isso senão por alguma coisa de sobre-acrescentado, que nos eleva acima de nossa natureza, que nos torna capazes daquilo de que somos radicalmente impotentes por nós mesmos, como seria o dom da razão para um animal ou o dom da visão para uma planta. Essa alguma coisa é chamada aqui em baixo de graça santificante. É, diz o apóstolo São Pedro, uma participação na natureza divina. E é preciso que seja assim; pois, como acabamos de ver, em nenhum ser a operação ultrapassa, pode ultrapassar a natureza desse ser. Se um dia somos capazes de ver
a Deus, é porque alguma coisa de divino terá sido depositada em nós, ter-se-á tornado uma parte do nosso ser, e o terá elevado até torná-lo semelhante a Deus. “Bemamados, diz o apóstolo São João, agora somos filhos de Deus, e aquilo que um dia seremos ainda não se manifestou: seremos semelhantes a Ele, porque nós O veremos tal como Ele é” (I Jo., III, 2).

Essa alguma coisa nós a recebemos desde este mundo, no santo Batismo. O apóstolo São João a chama um germe (I Jo., III, 9), isto é, o início de uma vida. Era o que Nosso Senhor nos assinalava quando falava a Nicodemos sobre a necessidade de um novo nascimento, de uma geração para a nova vida: a vida que o Pai tem nEle mesmo, que Ele dá ao Filho, e que o Filho nos traz ao nos enxertar nEle pelo Santo Batismo. Essa palavra enxerto, que dá uma imagem tão viva de todo o mistério, São Paulo a tomara de Nosso Senhor, que disse a Seus apóstolos: “Eu sou a videira, vós sois os ramos. Assim como o ramo não pode dar fruto por si só, sem permanecer na videira, assim também vós, se não permanecerdes em Mim”.

Essas idéias elevadas eram familiares aos primeiros cristãos. O que o demonstra é que os apóstolos, quando levados a falar delas nas Epístolas, fazem-no como de uma coisa já conhecida. E de fato, foi assim que os ritos do batismo lhes foram apresentados em longas catequeses. Depois, as vestes brancas dos neófitos lhes dizia que eles começavam uma vida nova, que relativamente a essa vida eles estavam nos dias da infância: Filhos espirituais, era-lhes dito, como crianças recém-nascidas, desejai ardentemente o leite que deve alimentar vossa vida sobrenatural: o leite da fé sem alteração, sine dolo lac concupiscite, e o leite da caridade divina. Quando o desenvolvimento do germe que recebestes tiver chegado a seu fim, essa fé tornar-se-á clara visão, essa caridade tornar-se-á amor divino.

Toda a vida presente deve tender a esse desabrochar, à transformação do velho homem, do homem da pura natureza e mesmo da natureza decaída, em homem deificado. Eis o que acontece aqui em baixo ao cristão fiel. As virtudes sobrenaturais, infundidas em nossa alma no batismo, desenvolvem-se a cada dia pelo exercício que nós lhes damos com os socorros da graça, e tornam assim a graça capaz das atividades sobrenaturais que deverá desdobrar no céu. A entrada no céu será o nascimento, assim como o batismo foi a concepção.

Assim são as coisas. Eis o que Jesus fez e a respeito do que Ele veio informar o gênero humano. Desde então a concepção da vida presente foi radicalmente mudada. O homem não estava mais sobre a terra para gozar e morrer, mas para se preparar para a vida do alto e merecê-la.

GOZAR, MERECER, são as duas palavras que caracterizam, que separam, que opõem as duas civilizações.

Isto não quer dizer que desde o momento em que o cristianismo foi pregado os homens não pensaram em mais nenhuma outra coisa que não fosse a sua santificação. Eles continuaram a perseguir as finalidades secundárias da vida presente, e a cumprir, na família e na sociedade, as funções que elas requerem e os deveres que elas impõem. Ademais, a santificação não se opera unicamente pelos exercícios espirituais, mas pelo cumprimento de todo dever de estado, por todo ato feito com pureza de intenção. “Tudo quanto fizerdes, diz o apóstolo São Paulo, por palavras ou por obras, fazei-o em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo... Trabalhai para agradar a Deus em todas as coisas, e dareis frutos em toda boa obra” (Col., I, 10 e III, 17).

Além disso, permaneceram na sociedade, e nela permanecerão até o fim dos tempos, as duas categorias de homens que a Santa Escritura tão bem denomina: os bons e os maus. Todavia é de se reparar que o número dos maus diminui e o número dos bons aumenta à medida que a fé adquire mais influência na sociedade. Estes, porque têm a fé na vida eterna, amam a Deus, fazem o bem, observam a justiça, são os benfeitores de seus irmãos, e por tudo isso fazem reinar na sociedade a segurança e a paz. Aqueles, porque não têm fé, porque seus olhares ficaram fixados nesta terra, são egoístas, sem amor, sem piedade por seus semelhantes: inimigos de todo o bem, eles são na sociedade uma causa de discórdia e de impedimento para a civilização.

Misturados uns aos outros, os bons e os maus, os crentes e os incrédulos, formam as duas cidades descritas por Santo Agostinho: “O amor a si, que pode ir até ao desprezo de Deus, constitui a sociedade comumente chamada “o mundo”; o amor a Deus, levado até ao desprezo de si mesmo, produz a santidade e povoa “a vida celeste”.

À medida que a nova concepção da vida trazida por Nosso Senhor Jesus Cristo à terra entrou nas inteligências e penetrou nos corações, a sociedade se modificou: o novo ponto de vista mudou os costumes, e, sob a pressão das idéias e dos costumes, as instituições se transformaram. A escravidão desapareceu, e ao invés de se ver os poderosos subjugarem seus irmãos, viu-se-os se dedicarem até ao heroísmo para obter-lhes o pão da vida presente, e também, e sobretudo, para obter-lhes o pão da vida espiritual, para elevar as almas e santificá-las. A guerra não mais foi feita para se apoderar dos territórios de outrem, e conduzir homens e mulheres à escravidão, mas para quebrar os obstáculos que se opunham à expansão do reino de Cristo e obter para os escravos do demônio a liberdade dos filhos de Deus.

Facilitar, favorecer a liberdade dos homens e dos povos nos seus passos em direção ao bem, tornou-se a finalidade para a qual as instituições sociais se encaminharam, senão sua finalidade expressamente determinada. E as almas aspiraram ao céu e trabalharam para merecê-lo. A busca dos bens temporais pelo gozo que deles se pode tirar não foi mais o único nem mesmo o principal objeto da atividade dos cristãos, pelo menos dos que estavam verdadeiramente imbuídos do espírito do cristianismo, mas a busca dos bens espirituais, a santificação da alma, o crescimento das virtudes, que são o ornamento e as verdadeiras delícias da vida daqui de baixo, e ao mesmo tempo garantia da bem-aventurança eterna.

As virtudes adquiridas pelos esforços pessoais se transmitiam pela educação de uma geração a outra; e assim se formou pouco a pouco a nova hierarquia social, fundada não mais sobre a força e seus abusos, mas sobre o mérito: em baixo, famílias que se detiveram na virtude do trabalho; no meio, aquelas que, sabendo juntar ao trabalho a moderação no uso dos bens que ele lhes propicia, fundaram a propriedade através da poupança; no alto, aquelas que, desembaraçando-se do egoísmo, se elevaram às sublimes virtudes da dedicação a outrem: povo, burguesia, aristocracia. A sociedade foi baseada e as famílias escalonadas sobre o mérito ascendente das virtudes, transmitidas de geração em geração.

Tal foi a obra da Idade Média. Durante seu curso, a Igreja realizou uma tripla tarefa. Ela lutou contra o mal que provinha das diversas seitas do paganismo e o destruiu; ela transformou os bons elementos que se encontravam entre os antigos romanos e as diversas espécies de bárbaros; enfim, Ela fez triunfar a idéia que Nosso Senhor Jesus Cristo dera da verdadeira civilização. Para aí chegar, Ela tinha-Se empregado primeiramente em reformar o coração do homem; daí viera a reforma da família, a família reformara o Estado e a sociedade: via inversa daquela que se quer seguir hoje.

Sem dúvida, crer que, na ordem que acabamos de explanar, não tenha havido desordem, seria se enganar. O antigo espírito, o espírito do mundo, que Nosso Senhor havia anatematizado, jamais foi, jamais será completamente vencido e aniquilado. Sempre, mesmo nas melhores épocas, ainda quando a Igreja obteve na sociedade a maior ascendência, houve homens bons e homens maus; mas viam-se as famílias subir em razão de suas virtudes ou declinar em razão de seus vícios; viam-se os povos distinguir-se entre si por suas civilizações, e o grau de civilização prender-se às aspirações dominantes em cada nação: elas se elevavam quando essas aspirações depuravam e subiam; elas regrediam quando suas aspirações levavam-nas em direção ao gozo e ao egoísmo. Entretanto, ainda que acontecesse que nações, famílias, indivíduos se abandonassem aos instintos da natureza ou a eles resistissem, o ideal cristão permanecia sempre inflexivelmente mantido sob os olhos de todos pela Santa Igreja.

O impulso imprimido à sociedade pelo cristianismo começou a diminuir, dissemos, no século XIII; a liturgia o percebe e os fatos o demonstram. Inicialmente houve a paralisação, depois o recuo. Esse recuo, ou melhor, essa nova orientação, foi logo tão manifesta que recebeu um nome, a RENASCENÇA, renascença do ponto de vista pagão na idéia da civilização. E com o recuo veio a decadência. “Tendo-se em conta todas as crises atravessadas, todos os abusos, todas as sombras no quadro, é impossível contestar que a história da França -- a mesma observação vale para toda a república cristã -- é uma ascensão, como história de uma nação, enquanto a influência moral da Igreja domina, e que ela se torna uma queda, apesar de tudo o que essa queda às vezes tem de brilhante e de épico, desde que os escritores, os sábios, os artistas e os filósofos substituíram a Igreja e A despojaram de seu domínio”.2


1 Vidimus nunc per speculum in aenigmate: tunc autem facie ad faciem. Nunc cognosco ex parte: tunc autem cognoscam sicut cognitus sum. (I Cor., XIII, 12). Agora vemos num espelho e em enigma: mas então veremos face a face. Agora conheço imperfeitamente: mas então conhecerei como sou conhecido (por intuição). (Conf. Mat. XVIII, 10; I Jo, III, 2). O Concílio de Florença definiu: Animae sanctorum... intuentur clare impsum Deum trinum et unum sicut est: As almas dos santos vêem claramente o próprio Deus, tal qual Ele é na trindade das pessoas e na unidade de Sua natureza.  

2 Maurice Talmeyr.


Fonte: DELASSUS, Monsenhor Henri. A Conjuração Anticristã - O Templo Maçônico que quer se erguer sobre as ruínas da  I g r e j a  C a t ó l i c a. Tomo I, Capítulo II – A Dupla Concepção de Vida, p.16-19.


Retirado do blog Santa Mãe de Deus

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