segunda-feira, 30 de maio de 2022

Jackson um fardo incômodo


por Cunha Alvarenga 
Revista Catolicismo, n° 37 | Janeiro de 1954

De como se pretende transformar a legendaria bengala do fundador do Centro Dom Vital no ridículo guarda-chuva do homem de Munique.

Por ocasião do 25° aniversário da morte de Jackson de Figueiredo, resolveu o sr. Tristão de Athayde desfazer ou atenuar o mal entendido que afirma existir entre aquele inolvidável batalhador da causa católica e a geração que agora se acha na casa dos vinte anos.

Tarefa árdua, pois na realidade consiste em procurar transformar a legendária e temível bengala do grande Jackson no conciliador e ridículo guarda-chuva do sr. Chamberlain, que a tanto equivale tentar fazê-lo passar de discípulo de Louis Veuillot a discípulo do sr. Maritain.

REVOLUÇÃO E REAÇÃO

Jackson de Figueiredo foi um homem marcado e inconfundível. Contra-revolucionário intransigente, proclamava-se abertamente reacionário, e quando pensou em congregar em torno de si um grupo de intelectuais para combater pela boa causa, qual o patrono que escolheu? Dom Vital, o homem do espanto, o Atanásio brasileiro, vítima da conjuração maçônica que solapou o império e que vem infectando a república desde os seus primeiros dias. Pelo seu destemor, pelas suas atitudes definidas em favor de um movimento católico sem compromissos com qualquer espécie de erros, por mais que estivessem em voga, Jackson alardeava esse título de reacionário por bem saber a origem de tal qualificativo em sua acepção pejorativa. Reação e reacionário são ex-pressões exploradas pelos inspiradores da propaganda revolucionária para ferretear seus adversários, sobretudo os ultramontanos, que sempre se colocaram na linha de frente. Tomando a revolução por representativa em grau de monopólio do progresso social e da liberdade, para aqueles fautores do mal reação vem a ser o "esforço de um partido político ou social, para voltar a um estado anterior; — o partido conservador; — Ultramontanismo; — Absolutismo; — qualquer sistema contrário ao progresso social" ( Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Candido de Figueiredo, edição de 1925, época em que Jackson se achava em plena atividade). Do mesmo modo, para os agentes da revolução reacionário significa "relativo ao partido da reação ou ao seu sistema; — Oposto à liberdade; sectário da reação política ou social" ( op. cit. ).

Eis porque em certos círculos infectados pela propaganda revolucionária nunca esteve em voga atribuir a alguém o título elogioso de reacionário. Só mesmo homens com o destemor de um Jackson de Figueiredo seriam capazes de enfrentar esse modo de combater condenado pelas próprias leis da guerra, e que corresponde ao envenenamento das cisternas. Sendo, portanto, incomoda a posição de um Jackson diante da revolução, os adesionistas preferem dar por morta a reação, com o que parece liquidado o assunto. Assim é que o sr. Tristão de Athayde nos afiança fazer parte o reacionarismo daquilo que "parece ter sido levado pelos ventos e tempestades do último quarto do século". Mas Jackson foi um reacionário, eis a pedra no caminho, eis o fato contundente. Como sair, então, da dificuldade? Nada mais fácil: trocando a palavra reação por outra que, por coincidência, lhe é contrária, isto é, revolução. Ao se colocar ao lado da reação, Jackson de Figueiredo estaria pondo os ombros à roda da revolução no sentido atual da palavra. E ao combater a revolução, por conseguinte, seria sua intenção esbordoar a reação em seu sentido ultramoderno. Pode parecer pilhéria, mas não é.

COMO SE MALTRATAM AS PALAVRAS

Eis o que diz o sr. Tristão de Athayde com todas as letras: "Ora, os termos reação e revolução sofreram, nesses vinte e cinco anos, uma transformação semântica considerável. Os termos reação e reacionário passaram a significar poder arbitrário, hipertrofia do Chefe, centralização estatal, neopaganismo político, imperialismo, etc. Enquanto o termo revolução se vem aplicando a toda transmutação profunda de valores, inclusive os mais espirituais. Para as novas gerações, se chamarmos a Jackson de revolucionário estaremos mais próximos da verdade do que lhe dando o qualificativo de reacionário de que ele tanto se orgulhava" ( crônica "Foi há 25 anos", no "Diário" de Belo Horizonte — 29 de novembro e 1o de dezembro de 1953).

Lamentemos ver como assim se infligem maus tratos às palavras, mas não nos devemos espantar com isso. Pois são elas simples meios instrumentais usados pelos homens para se entenderem uns com os outros. Nem sempre, porém, a loquela é empregada para transmitir a verdade e o bem. Pelo contrário, essa terrível arma também se presta para a dissimulação de intenções. Assim é que à argúcia de Jackson não escapava o verdadeiro conceito teórico e prático de revolução. "A revolução é uma arte, diz Olstock Ryder, mas os revolucionários desejariam que acreditássemos ser ela um cataclisma natural, tão inevitável quanto uma erupção vulcânica — um turbilhão espontâneo da revolta popular contra agravos insuportáveis". Como arte, é intento último e principal da revolução "destruir até os fundamentos toda a ordem religiosa e civil estabelecida pelo Cristianismo, levantando à sua maneira outra nova com fundamentos tirados das entranhas do naturalismo" (Leão XIII na Encíclica Humanum Genus). Eis porque ainda hoje repete Pio XII: "Não, não se acha na revolução, diletos filhos e filhas, a vossa salvação" ( alocução sobre a paz para o mundo e a colaboração das classes, de 13 de junho de 1943 ).

VEUILLOT E JACKSON

Não mudou, portanto, o sentido da palavra revolução para os católicos, e se lhe são dadas outras conotações, isto corre por conta de quem tem interesse em fazer uma cortina de fumaça sobre a verdadeira revolução que continua atuando no seio da sociedade contemporânea. Do mesmo modo, os que se opõem aos progressos da revolução continuam a ser reacionários, e é este o sentido autêntico da palavra: reacionário, ultramontano, é aquele que se opõe ao espírito revolucionário, desagregador das bases naturais e sobrenaturais da sociedade humana remida pelo Sangue de Nosso Divino Salvador.

Se vivo fosse, coerente e desassombrado como era em suas atitudes, continuaria Jackson a remar contra a corrente revolucionária, não dando margem ao menor mal-entendido entre a nova geração e a sua figura ímpar, quanto à mensagem de fogo que nos veio trazer.

Reacionário e ultramontano, tinha Jackson de Figueiredo em Louis Veuillot seu modelo em ortodoxia, em combatividade, em intransigência diante dos direitos da verdade. Não basta, portanto, tentar transformar o Jackson reacionário em um Jackson revolucionário. Seria também indispensável remover essa identidade de ponto de vista existente entre Veuillot e Jackson. Pois bem. Depois de citar a conhecida frase de Veuillot: "Le monde sera socialiste ou chrétien, il ne sera pas liberal", comenta o sr. Amoroso Lima: "O mundo de hoje não é nem socialista, nem cristão, nem liberal. Veuillot partiu do falso postulado de que o mundo seria necessariamente uma só coisa, one world. O mundo de hoje é pluralista. É ao mesmo tempo liberal, socialista e cristão. E outras coisas mais. Essa é a realidade histórica que um Maritain viu infinitamente melhor que um Veuillot. E acredito que o Jackson teria chegado ao mesmo resultado que Maritain. A menos que, por temperamento, desembocasse na catástrofe apocalíptica de Bernanos" ( art. citado ).

A OPÇÃO DO MUNDO MODERNO

De modo que, se ainda vivesse, não haveria outro remédio para Jackson: ou teria que trocar a bengala de sua intrepidez e de sua intransigência pelo guarda-chuva do pluralismo maritaineano, ou então teria que descambar para os desatinos de um Bernanos. Tamanha é a intolerância do sr. Tristão de Athayde que não admite nem sequer que Jackson permanecesse fiel a si mesmo, o que equivale dizer: fiel à Igreja que ele punha como razão norteadora de toda a sua atividade, e ao pensamento político contra-revolucionário que ainda era uma forma de trazer para a arena político-social a defesa da causa católica.

Quando vemos em vésperas de realização as previsões de Veuillot sobre o futuro do mundo, quando, pelos quatro pontos cardeais e num crescendo assustador, a apostasia liberal vai cedendo lugar à apostasia socialista, quer em sua forma crua e declarada, como por detrás da cortina de ferro, quer em sua forma farisaica, através do último estágio da decomposição do democratismo liberal, segundo o qual a lei passa a ser a expressão do número ou da vontade geral manifestada pela alquimia de duvidosos sufrágios demagógicos, — quando Pio XII nos aponta a terrível imagem do Leviatã socialista como um dos maiores flagelos que ameaçam a sociedade humana em nossos dias, vem o trêfego sr. Tristão de Athayde nos dizer que nada nos resta fazer senão nos conformarmos com o liberalismo e com o socialismo e "com outras coisas mais", pois a época é do pluralismo. ... Resta saber se o socialismo segue o figurino pluralista do sr. Maritain no que diz respeito ao Cristianismo, ou se, pelo contrário, como última etapa da revolução, seu fito não será, segundo advertência do Papa, destruir até os fundamentos toda a ordem religiosa e social estabelecida pela Igreja.

Anti-liberal e anti-socialista em uma época em que os estragos causados pelo liberalismo já eram arqui-evidentes e em que os males do socialismo em grande parte apenas podiam ser vislumbrados, hoje em que a fase liberal já se acha superada, e quando o socialismo promove verdadeiras devastações no mundo universo, esse grande espírito que foi Jackson de Figueiredo, se ainda estivesse entre nós, continuaria por certo a dizer, com Veuillot, que a opção para a humanidade não se acha entre o Cristianismo e as meias tintas da mediocridade liberal, mas entre a Igreja e o dragão socialista, último estágio daquela revolução a que de Maistre dava o nome de satânica.

Verdadeiramente, Jackson é um fardo incômodo para aqueles que largaram sua bandeira em meio do caminho e que trocaram Dom Vital e Veuillot pelo infeliz Dom Lacerda e por Maritain. Apresentemos à atual geração o Jackson autêntico, reacionário e ultramontano, afastando desses qualificativos toda a peçonha que lhes procura inocular a propaganda revolucionária. Eis o único modo de desfazer quaisquer possíveis mal entendidos entre esse grande paladino e a mocidade inteligente e generosa de nossos dias.

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