sexta-feira, 27 de maio de 2022

Recomecemos!

 


Recomecemos! 


— Bem diz S. Francisco de Sales que “a origem de todas as nossas mágoas está em nos esquecermos daquela máxima dos Santos, segundo a qual todos os dias devemos julgar que principiamos a nossa aprendizagem na perfeição”. Efetivamente, a perfeição em grande parte é uma questão de recomeçar. Definição sumária e ao mesmo tempo relativa. É lógico: recomeçar cada dia, humildemente, sem despeito, com confiança e ardor; recomeçar a tarefa tão interessante e tão ingrata, às vezes, do próprio aperfeiçoamento, tudo isto exige uma não pequena medida de boa vontade. Como, porém, no céu triste de um inverno que acabou, Deus faz surgir o sol radioso para recomeçar a florida estação da primavera, assim em nossa alma surge também o sol da graça, se nos voltamos para Deus. S. Francisco de Assis, às vésperas da morte, ele, o êmulo dos serafins, dizia ao seu irmãozinho Frei Leão: “Meu irmãozinho, quando, pois, amaremos verdadeiramente ao bom Deus?… Vamos!… comecemos a fazer alguma coisa para Ele!”

Recomecemos, pois, cada dia, nossa vida de fé, de luta, de confiança, de paciência, de devotamento, de amor divino… Recomecemos corajosa e confiantemente, pois que o recomeçar nos levará à perfeição! 

* * *

Há nos conselhos do nosso santo doutor uma suprema consolação para as almas que seriamente desejam agradar sem reserva a Deus e se dedicam ao seu serviço por íntimas comunicações. Julgam-se elas mais indesculpáveis que as outras nas infidelidades que involuntariamente cometem e parece-lhes que as suas quedas deverão causar-lhes maior admiração. E, todavia, não é assim que o entendem os mestres da vida espiritual. Frequentemente — nota o P. Grou — as nossas quedas resultam da rapidez da carreira: o ardor que nos impele não nos dá tempo de tomarmos certas precauções. As almas tímidas e precavidas, sempre desejosas de saber onde põem os pés, sempre a dar voltas para evitar um passo em falso, constantemente receosas de se mancharem, não avançam tão depressa quanto as outras, e surpreende-as quase sempre a morte no meio da sua carreira. Não são mais santos os que cometem menos faltas, mas sim os que têm mais coragem, mais generosidade, mais amor e fazem maiores esforços sobre si mesmos, não receando escorregar, cair até e se manchar um pouco, contanto que avancem.

S. João Crisóstomo dizia a mesma coisa por outros termos: “Se um soldado fica na refrega, deixa-se ferir e abater um pouco às vezes, não há quem, tão duro ou tão ignorante das coisas da guerra, disso lhe faça um grande crime. Só não são feridos os que nunca se lançam nos combates. Os que mais ardidos se atiram contra o inimigo são os que mais recebem os golpes do embate”.

7. Quedas graves — Dever-se-ão aplicar até mesmo ao pecado mortal as reflexões deste capítulo e recomendar às almas gravemente culpadas que não se admirem das quedas que as privam da amizade de Deus? Ousará S. Francisco de Sales ter para elas a mesma linguagem como para com os corações generosos, aos quais se dirigia até agora?

Escutemos: “Meu caro Teótimo, pasmam os céus, tremem de pavor as suas portas e os anjos da paz ficam tomados de espanto em face da estupenda miséria do coração humano que, para se prender a coisas tão deploráveis, abandona um bem tão amável. Mas já viste esta pequena maravilha, que todos sabem sem lhe conhecerem a razão? Quando se abre um tonel bem cheio, ele não deixará sair o vinho, se por cima se lhe não deixar entrar o ar.

Certamente, nesta vida mortal, ainda que as nossas almas abundem em amor do Céu, jamais dele estarão tão cheias que pelas nossas fragilidades esse amor não possa sair; lá em cima, porém, no Céu, quando as suavidades da beleza de Deus ocuparem todo o nosso entendimento e as delícias da sua bondade saciarem toda a nossa vontade, sem nada haver que a plenitude do seu amor não preencha, objeto nenhum, ainda que ele penetre até aos nossos corações, poderá jamais tirar nem fazer sair uma só gota do precioso licor do seu amor celeste, e não será jamais possível pensar em deixar entrar o vento por cima, quer dizer, iludir ou surpreender o entendimento, porque ficará imóvel na apreensão da verdade soberana”.

Fiquemos bem avisados: uma queda em pecado, grave que seja, não poderia provocar espanto senão no Céu, onde não pode haver quedas. Cá na terra, não há motivo para disto alguém se admirar mais do que vendo um líquido sair dum vaso aberto. 

8. Tornar a levantar-se imediatamente. — Oh, como seríamos indulgentes para com os nossos irmãos, digamo-lo de passagem, se bem meditássemos estes pensamentos! Como nos identificaríamos com a paciência inefável d’Aquele que, antes de investir os seus Apóstolos do poder de remitir os pecados, lhes recomendava que perdoassem não sete vezes, mas setenta vezes sete!

Sem dúvida, esta indulgência, com relação às faltas, próprias assim como às alheias, não deve ir ao ponto de as olhar com indiferença. Mas uma coisa é não se admirar delas, outra é não as detestar e reparar. O lavrador não se espanta ao ver as ervas daninhas destruírem a sementeira; mas por isso terá ele menos cuidado de arrancá-las?

Assim também, depois de haver dito em sentido absoluto e sem excetuar os pecados mortais: “quando incorrerdes em alguma falta, não vos admireis”; e “se bem soubéssemos quais somos, em vez de nos admirarmos de nos ver em terra, pasmaríamos ao pensar como podemos permanecer em pé”, objurga-nos S. Francisco de Sales a “que não nos deitemos na terra nem nos retoucemos na lama”, em que caímos; e acrescenta: “Se a violência da tempestade, às vezes nos perturba um pouco o estômago e à cabeça nos traz algumas vertigens, não seja isso motivo de espanto; antes, tão depressa como pudermos, retomemos a respiração e ânimo para proceder melhor”.

“Quando caíres, levanta-te com uma grande placidez, humilhando-te profundamente diante de Deus e confessando-Lhe a tua miséria, mas sem te admirares da queda que deste. Pois que há de extraordinário em que a enfermidade seja enferma, a fraqueza, fraca, e a miséria, miserável? Detesta, sim, com todas as forças, a afronta feita à divina Majestade e depois, com uma confiança inteira e animosa em sua Misericórdia, volta ao caminho da virtude, que havias abandonado”.

Este último texto deixa ver bem quais as disposições, supremamente salutares, que, em lugar do espanto, devemos excitar em nós após as quedas: conhecer a nossa abjeção que é o primeiro grau de humildade. Dela falaremos na segunda parte desta obra. Por agora, tendo estabelecido que a consciência das faltas próprias não deve causar-nos admiração, demonstraremos que muito menos ainda nos deverá perturbar.

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Autor: Pe. José Tissot, Missionário de S. Francisco de Sales
Livro: Arte de Aproveitar-se das Próprias Faltas, Segundo S. Francisco de Sales

PDF: https://docero.com.br/doc/1cnc1ve

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